Incendiário

Senti o beliscar da pele quando passei os dedos pela terra, agora, tão profundamente negra e áspera. Levantei os olhos, embotados de uma sensação única, intransferível. Era a primeira vez que via aquela estonteante paisagem…destroçada. Caminho por ela desde as minhas primeiras pegadas. Nos anos já passados, ela se manteve solidamente imutável. A única mudança era a expansão viva de seu natural e crescente corpo, que corria pelo campo emoldurando a vista. Agora, toda a cadeia de bambus que ali vivia, desde os tempos dos antepassados, havia se reduzido a uma massa negra, que se mistura à terra pisada pelos animais que não reconhecem mais aquela paragem.

Incendiário. Assim chamei a figura onipresente que, em total falta de consciência ou tomado por ela, abria em mim uma chaga. Quando caminhei um pouco mais, me dei conta que a velha figueira também estava perdida, brutalmente partida ao meio. Seu firme corpo agora jazia ao leito de um mar de pontiagudos galhos, desvendando o vivo cenário do intenso raio que a atingira na mesma semana do incêndio.    

Incendiário. Assim também chamei o processo composto em cinco dias de ensaio espontâneo, sem nenhuma espécie de planejamento sobre o que seria produzido. Apenas a percepção do ambiente e de seus elementos, meus verdadeiros motivadores criativos: a negra lama e as cinzas compunham a vestimenta; as ossadas queimadas de animais que por ali morreram compunham os adereços. A personagem surgiu desse entrelaçamento. Em meio ao frenesi da produção liberta houve dias de chuva e intenso frio, houve o dia em que rio amanheceu vermelho, houve o dia da presença de animais que se aproximavam. E assim , gota a gota, construí essa massa fotográfica volúvel que ainda passa por processos de construção e edição.  

Marília Vasconcellos